sábado, 22 de agosto de 2015

agora outrora e depois...


Perdi a conta de – na verdade, nunca contei – quantas vezes ouvi meu pai contar a história de Miguel Strogoff. O camarada passa o filme todinho investigando se o outro era agente russo. Vasculha tudo e não descobre nada. Já no final, eles vão juntos a um bar e o camarada encosta um cigarro aceso no braço do outro, que, com a dor da queimadura, pragueja em russo. A essa altura a narrativa tem o clima surpreso, enfático e entusiasmado de gran finale e meu pai conclui seu relato como se ainda estivesse no cinema vendo a última cena do filme: O homem ferido fala em sua própria língua!

Meu pai costumava contar muitas histórias. E repetia muito cada história. Durante um tempo da minha vida me cansei das repetições. Boba que era, quando ele começava a contar, a única coisa que eu pensava era que já conhecia o fim. Mas ele contava como se ele próprio não soubesse o final. Caminhava atenta e curiosamente por cada pequeno e grande evento da trilha da narrativa. Talvez por isso minha memória seja uma espécie de museu das histórias que meu pai costumava contar. Museu-casarão antigo com muitos salões. Cada salão, um assunto. Tinha o salão das memórias dele menino; outro salão com as memórias dele peregrino pelo mundo longe de casa; o salão dos poetas e dos poemas ditos de coração; o salão dos filmes que viu; o salão das piadas... Depois que ele morreu, os salões se fecharam. Fazia tempo que não visitava.  Até que  um acontecimento reabriu as portas do museu e o grande salão dos filmes veio me buscar. O pé direito é alto e o chão é de madeira, dessas madeiras sonoras que vibram aos nossos passos e orquestram o eco do caminhar e do caminho criando um aqui que é agora e também outrora. E também futuro. Mas isso, eu ainda não sabia...

Não sabia da cena que me aguardava naquela manhã de sábado que saí de casa em missão: uma lista de tarefas pra dar conta. Saí cedinho, pra evitar filas. O plano era estar de volta antes do meio dia. A certa altura do caminho entre uma tarefa e outra e um lugar e outro, passei, numa curva/esquina, por um homem escorado numa bicicleta escorada num muro. Cotovelos apoiados na bici, ele estava de pé, mas...não por muito tempo. Lívido. Movia-se em câmera lenta, boneco de barro mole se derretendo e escorrendo muro abaixo. Estatura mediana, estrutura de sedentário, e muito branco. E tentava abrir os olhos. Ou revirava os olhos? A imagem me fisgou. Esse camarada não está bem. Segui adiante, alguém há de socorrer. Fui me afastando e me angustiando. O lugar era meio deserto de gente a pé àquela hora. Volto? Na dúvida não duvidei, melhor retornar enquanto estou perto. Voltei. Parei o carro um pouco antes da curva. Não dava pra ver o homem, só a curva.  Fui andando, será que ele já foi? Não tinha ido. Tinha se sentado no chão e minava suor.

Passei por aqui ainda agora e voltei porque vi que você não estava bem. É, saí para andar de bicicleta, parece que foi mais do que aguento... escureceu tudo... já estou melhorando. Você quer ligar e avisar alguém? Já liguei pra minha esposa, ela está vindo, só foi tomar um banho. Então fico aqui até ela chegar. Você comeu alguma coisa antes de sair? Comi, mas tenho pressão alta... Parou um motociclista solidário. Estou melhorando e minha esposa está vindo. Vruuuum,  lá se foi o motociclista. Passou uma senhora a caminho de um exame médico e disse que ele também tinha de ir ao médico. Ele queria ir para casa. E nada da esposa chegar. Vou marcar meu cardiologista, faz tempo que fui, ele vai me dar uns puxões de orelha. E contou que era hipertenso desde criança, hipertensão hereditária, tirei o sal da comida aos dez anos de idade. Mas ultimamente tenho comido muito na rua... Tinha um leve sotaque diferente do daqui. De onde é ? Acho que minha esposa não levou muito a sério minha ligação...Vou empurrando a bicicleta, moro aqui perto. Como a bicicleta não cabia no meu carro, e a essa altura eu não ia deixar a coisa pela metade, levo a bici e você leva seu corpo. Tentou não precisar, e se levantou tão rápido que ficou tonto. Não teve jeito, aceitou.

Parecia disposto a conversar e não se queixava de dor. Andando devagar, tomamos o caminho de sua casa. Percebi que seu sotaque se acentuava e perguntei de onde era. Calou-se. Já moro aqui há tanto tempo... E a conversa desviou para a alta pressão do seu trabalho, para a necessidade de se cuidar, para seus tinha trinta e cinco anos e o cansaço de cem, para seu filho pequeno e os desenhos animados que viam juntos. Quanto mais falava e quanto mais perto sua casa ficava, tanto mais cristalino ia ficando seu sotaque lusitano. Chegamos ao portão do seu prédio e paramos.


Segundos antes de entrar, como se eu ainda não soubesse, revelou, sou de Portugal, vim pra cá bem pequeno. Abriu o portão e se despediu assim, meu sotaque português fica mais forte quando estou sensível, frágil, me sentindo ferido. Tínhamos chegado ao fim do filme e aquele momento e aquela fala eram agora e outrora. E, talvez futuro, afinal o final é sempre imprevisto

sábado, 15 de agosto de 2015


Este texto não está pronto, mas lá vai senão não vai...

Envelheço descaradamente. Sem vergonha. Sem culpa. Sem truque pra disfarçar. Exibo mesmo. Oxente!, cheguei até aqui e não vou aproveitar pra experimentar?!

Outro dia, li um texto de uma atriz famosa, bonita – muito bonita –, boa escritora. Quando li, tomei um susto. O povo achando lindo e maravilhoso o texto e eu achando ‘o ó’. Não exatamente ‘o ó’. Fiquei com pena da mulher que, no texto, parecia implorar, ‘alguém pode me comer?’. (Sim, estou sendo ácida.) Um texto sobre a falta que a autora sentia de ter um companheiro. Justo ela foi porta-voz dessa solidão no envelhecer. Parecia um anúncio de ‘minhas qualidades apesar da velhice’.  Comparava-se a um queijo. Algo do tipo, ‘ainda sou comestível e posso ser deliciosa com uma taça de vinho’.  O texto veio no zap, encaminhado por uma amiga querida. Fiquei quieta. Azamiga tudo se derretendo com o texto, e eu quieta. Até que disparei: tem coisa nesse texto que tá de dar dó. Azamiga não entenderam e perguntaram o que eu pensava de diferente. Adorei a pergunta e tasquei um, ‘mulheres queridas, neste meu envelhecer estou mais pra faca e dente do que pra queijo!’. Mentira pura, também me sei queijo podrinho e especial. E, muitas vezes, um queijo podrinho e estragado. Mas era um dia de empoderamento – palavra da moda! – e realmente fiquei duvidando de que ela ‘não arrumava ninguém porque estava na lista das velhas’.

E ao mesmo tempo me pus a pensar sobre o ‘estar na lista das velhas’. O texto traz uma coisa que pode ser ampliada. Quando a gente não está ‘na crista da onda do gosto popular’ – e o gosto popular é coisa que muda muito... – vai se deparando com essa solidão que pede me olhe com olhos de ver além do estereótipo, além da aparência. Descubra em mim alguém que possa despertar, em você, amor e desejo de estar junto. E a aparência tanto pode ser muita beleza ou muita feiura. Os muito belos podem ter a própria beleza como inimiga. Como uma espécie de redoma que esconde a pessoa. E os muito feios também. (Aqui levanto a bandeira ‘pelo direito de ser feio sem querer me embelezar’, mas isso já é mais ou menos outro assunto...)

Aí comecei a pensar nesse negócio de como a gente se vê e como o outro nos olha (ou, nem olha...). Quando D. Velha vai chegando em nós, a descoberta não é logo no espelho do nosso banheiro. É no espelho do olhar do outro. De repente, as pessoas começam a chamar a gente de ‘senhora’, de ‘tia’. Nos salões de beleza as ‘dicas de beleza’ são ‘esconder/disfarçar os brancos’, maquiagem pra esconder/disfarçar as rugas. Pintei meu cabelo até os 47. Então, só depois daí, é que descobri o protagonismo dos cabelos grisalhos. Ou, melhor, d’a velha’ colada em mim. Até uma pessoa se levantar da cadeira, no metrô, pra me dar o lugar, eu não tinha ideia do impacto da minha estampa envelhecida sendo atirada de volta pra mim, pelo gesto do outro. Foi uma revelação e tanto. O primeiro assento cedido é como o primeiro sutiã: a gente nunca esquece. E as revelações sobre os choques dos olhares não param aí. Mas vou parar porque quero mudar de rumo.

Quero falar de Amor, porque foi esse o tema maior que o texto da linda escritora me trouxe. Ela fala do que ela gosta nela. Isso gostei no texto. Sem vergonha de se mostrar e sem falsa modéstia. Amor é meu argumento ácido quando me sugerem truques para disfarçar os sinais da velhice. Só precisa ser bonito quem não é amado, quem é amado pode ser só o que éPode até *rejuvelhecer*!

*palavra criada pela minha sobrinha Mel, 08 anos.